Ainda não consigo ver o arco-íris.....

Agradeço a todos o vosso cuidado.
Tem-me chegado por várias vias, mensagens a perguntar como estamos.
Como podem ver deixei de escrever cartas ao Pedro.

Final de Março. Ligou-me a dizer que achava que tinha apanhado o vírus.
Não tinha olfato nem paladar.
Acho que foi durante um fim de semana mas a minha memória pode estar a trair-me.
Fez o teste. Testou positivo.

Os pais do Pedro ficaram em pânico.
Estiveram durante algum tempo em casa de uns familiares mas entretanto decidiram mudar-se para perto de Odemira (têm casa lá).
Queriam o Pedro lá.
Puxei dos meus galões de mulher. 
Afinal de contas jurei, prometi e disse-o em voz alta, meia embargada perante Deus e um montão de pessoas:

- Prometo estar contigo, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, amando-te, respeitando-te e sendo-te fiel todos os dias da minha vida até que a morte nos separe.

O Pedro tinha de vir para casa! E não se falava mais nisso.
Os pais ficaram zangados comigo. 
Argumentei. Disse-lhes que eram um grupo de risco.
Eles argumentaram que o Pedro era filho e por um filho fazemos tudo.
É verdade. Mas por um marido também...

Soube de manhã que o Pedro vinha para casa.
E não sei bem como. Com três crianças a cargo consegui pôr o sótão habitável.
O sótão já é um sitio habitável, normalmente. Porque é o nosso escritório.
Temos televisão. Temos uma casa de banho. Temos um sofá cama que serve de sofá.
A verdade é que não fiz grande coisa. Fiz a cama. Porque o sofá cama nunca tinha sido utilizado para o seu fim e como é óbvio não tinha lençóis.
Mergulhei na garagem à procura de algo que nunca pensei usar.
Tinha a certeza que tinha um mini, muito mini frigorífico. O meu tio Simon teve em tempos uma espécie de pousada e quando acabou sondou meia família para ver se queríamos coisas. Na altura, ainda não devia ter 30 anos achei fixe ficar com um mini, muito mini frigorífico. Fiquei com outras coisas...que eu na minha família sou conhecida como a: "se não souberes o que fazer com isso liga à Joana...".
Nunca tinha usado o mini, muito mini frigorífico. Sabia que o tinha. Mas não sabia onde.
Depois de ter aberto mil e uma caixas lá descobri a criatura.
Liguei-o. Para ver se a coisa, mini coisa funcionava!
Funcionou. Ou pelo menos acendia a luz...
Levei-o para o sótão.
Na minha cabeça ia começando a pensar o que fazer e como operacionalizar a nossa vida dali para a frente.
Depois do frigorífico montado.
Voltei à garagem. Desta vez fui à procura do microndas.
O microondas que temos em casa é o que tínhamos em Carcavelos mas tinha o da casa do Pedro em caixa incerta. Encontrei.
Levei-o para o sótão.
O frigorífico estava a funcionar bem.
Desci para vir cá abaixo e tentar perceber o que podia dar jeito ao Pedro.
Fruta.
Sopa.
Pão.
Água.
Pratos, copos, talheres.
É óbvio que lhe ia deixar as refeições principais mas ia-lhe dar jeito ter à mão algumas coisas.
Fiz salada de fruta que o Pedro gosta.
E deixei-lhe um frasco cheio de pipocas, que ele adora.

Comecei a pensar no que ia dizer à Alice.
A Mariana ia perceber que algo se estava a passar mas.... 
A Luísa não ia dar conta ou se desse conta, nesta idade não há muito a fazer.
Já tinha tido uma conversa com a Alice quando o Pedro deixou a nossa casa.
Era uma vez um bicho mau chamado Corona vírus!
Era uma vez um super herói chamado Pedro.
O Corona virus queria fazer mal às pessoas mas o que ele não contava é que lhe iria aparecer à frente o Super Pedro!
Não tenhas medo! O Super Pedro não está sozinho tem outros amigos a dar cabo do Corona vírus! E vai correr tudo bem!

Tinha de recontar a história.
O Super Pedro voltou mas nós não podemos estar com ele.
Porque o Super Pedro tem com ele o Corona Vírus e só ele o consegue combater, porque é o Super Pedro! 
Nós não podemos ficar perto porque o Corona Vírus vai apanharmos! E o Corona vírus é uma coisinha avermelhada, super feia e cheia de corninhos que nos quer fazer mal!

A miúda reagiu mais ou menos bem.
Foi surreal a chegada do Pedro.
Quando chegou ao portão ligou-me.
Tranquei os cães no meu quarto.
Levei as miúdas para a garagem.
Para o Pedro entrar sem ser visto.
A Mariana ia querer abraça-lo e a Alice também. 
Mesmo com a conversa que tinha tido com ela seria difícil segurá-la.
Ah! Eu também o queria abraçar.
Ainda o vi por uma janelinha.
As miúdas já estavam distraídas e fascinadas com o maravilhoso mundo novo que é uma garagem.

Quando se instalou no sótão enviou-me uma mensagem.
O caminho estava livre.
Entrei em casa com as miúdas pela porta da frente que dá acesso ao hall de entrada. E depositei-as num quarto que temos ao lado da cozinha. Pedi à Alice:
- Por favor não saias daqui!
A Luísa estava na espreguiçadeira. A Mariana dentro do parque. 
- Fazes companhia à Mariana?
Acabei por colocar a Alice dentro do parque com a Mariana.
- Ficas aqui um bocadinho? Prometes que ficas aqui?

O Pedro tinha entrado pela porta de trás que dá acesso à sala. E depois tinha subido a escada.
Limpei com água e lixívia, o chão todo da sala, as escadas até ao sótão. O corrimão.
O Vasco estava tresloucado no meu quarto.
A Gabi estava treloucada de alegria no meu quarto. O Pedro estava em casa.

A Alice chamou-me várias vezes. Subi. Desci.
Ri-me com ela.
Cantei com ela.
Dançámos. Eu, ela e a Mariana.
O chão secou.
As miúdas foram para a sala.
Soltei os cães.
O Vasco não sabia o que fazer.
Ia para o sótão? Ladrar? Rosnar? Tentar arrancar uma perna ao Pedro?
Ou!
Ia para baixo ficar com as miúdas e comer?
Dúvidas existenciais na vida de um cão que não é bem um cão.
A Gabi subiu e ladrou, ladrou à espera que o Pedro lhe abrisse a porta. Desistiu de ladrar e deitou-se à porta do dono. E assim ficou...

Falei com a Alice. E disse-lhe:
- O pai já cá está! Queres falar com ele?
Subimos. As quatro. Mais o Vasco.
A Alice!
- Papá! 
O Pedro respondeu.
A Mariana disse:
- Papá, papá...
A Alice chorou.
Eu chorei.
O Pedro chorou.
O Vasco ladrou...

Voltámos para a sala.
A Alice a meio de uma brincadeira subia para o sótão para ir falar com o pai.
- Tenho de ir dizer ao papá...
Lá ia ela. Foi assim durante dias seguidos.
Mais tarde. Começamos a ligar-nos por videoconferência.
O Pedro estava sempre connosco na sala! E as miúdas falavam com ele e o Pedro participava das brincadeiras. 
Tão perto e tão longe! Se me contassem que isto um dia ia acontecer...como é possível?

Nos dias seguintes a ter chegado, o Pedro piorou. 
Dores musculares. Tosse. Dores de cabeça.
Cheguei a passar as noites à porta do sótão com medo que o homem se apagasse. Tinha tanta tosse que eu achei que aqueles pulmões não iam aguentar. 
Parece exagero mas a primeira semana foi muito difícil.
Eu sou asmática. Já tive duas pneumonias bilaterais (2014 e 2016) e nunca tive esta tosse.

De dia tentava gerir as miúdas. Inventava projetos para a Alice fazer.
Desenhos para dar ao pai que colocávamos no tabuleiro da comida.
Fizemos um arco-íris para pôr ao portão.
Vesti a Alice de bailarina, bela adormecida, branca de neve e princesa! Porque a minha miúda mais velha é mesmo uma princesa!
Duas vezes por semana tinha aulas de ballet via zoom.
A Mariana entretanto tinha começado a andar. Ainda tentei vesti-la de bailarina, bela adormecida, branca de neve e princesa mas não está para aí virada. Neste momento adora ir até à cozinha abrir uma gaveta, tirar as frigideiras e brincar com elas. Até eu arrumar tudo de novo e ela voltar a fazer o mesmo....
E a Luísa. Ai, caneco da miúda que dorme pouco....

Não foi fácil. Não está a ser fácil.
O Pedro começou efectivamente a melhorar na semana passada.
Durante este tempo e conforme ia podendo ia telefonando aos doentes dele. 
Fez video chamadas com os que têm acesso a estas tecnologias. 
Continuou conforme conseguiu a contactar os centros de diálise que tinha a cargo dele orientar.
No final da semana passada fez o teste ainda deu positivo. Vai repetir o teste amanhã.

Quando o teste do Pedro der negativo. 
O Pedro vai sair do sótão e poder abraçar as filhas e a Gabi. E ter forças para não se deixar abocanhar pelo Vasco.
Provavelmente dormirá aqui connosco. Mas...
...no dia seguinte vai voltar ao hospital.
E vai voltar para a casa dos pais, vazia.
Não sei quando voltarei a ver o meu marido.
Não sei quando é que as minhas filhas vão voltar a abraçar o pai.
Provavelmente quando aparecer uma vacina. 
Até lá...
...resta-nos esperar. 
O Pedro não estava connosco no dia 10 de Março, quando a Mariana fez um ano.
Ontem, a Alice fez anos e o Pedro não saiu do sótão...
Surreal. A nossa vida tornou-se surreal.

Dou por mim a pensar na injustiça que são estes dias.
Injustiça para quem se vai. Injustiça para quem está a viver isto tudo.
Dou por mim com vontade de chicotear-me por não estar a ver o copo meio cheio.
Não consigo. Neste momento não consigo.
Ainda não consigo ver o arco-íris. 



Comentários

  1. As melhoras do Pedro. E continuem a ser essa fantástica família.

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  2. Acredito que seja difícil veres o copo meio cheio... a tua vida sofreu uma volta imensa, mas no final disto tudo vocês vão sair mais fortes e mais unidos do que nunca!

    No aniversário do vosso casamento vão estar juntos a celebrar!
    Vamos acreditar que vais ver o arco-íris 🌈💚

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    1. No nosso aniversário de casamento em 2020 não vamos estar, infelizmente. Infelizmente em Junho isto estará longe de estar acabado.
      Pode ser que para o ano.

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  3. Caraças Joana... como somos todos tão frágeis e como a nossa vida fica toda de pantanas de um momento para o outro...
    Há que ter muita paciência e acreditar que tudo vai ficar bem.
    Beijinhos

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  4. O medo neste momento e a incerteza é o que nos faz a todos não ver o arco-íris.
    Beijinhos e rápidas melhoras para o Pedro

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  5. Que posso dizer que já não te tenham dito? Que posso desejar que já não te tenham desejado?
    Acho que nada. São situações que podemos imaginar, mas só quem passa por elas é que sabe como é difícil.
    Acredito em ti. Acredito no Pedro. Vocês são uma força da natureza e, juntos vão conseguir vencer este *escolho* que apareceu na vossa vida e, na vida de tanta gente.
    Imagino (mal) o que tem sido o teu dia a dia! Coragem.
    Um grande beijinho para as tuas princesas. Um afago no Vasco e na Gabi. Um grande abraço ao Dr.Pedro e, para a Joana um grande xi-coracao.
    Aguardo notícias. Não escrevo porque tempo é coisa que deve ter pouco. Bj

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  6. Puxa ... como a nossa vida muda. Mas depois de tudo passar vamos olhar para trás e não vamos ter saudades nenhumas deste tempo. Acredito que daqui a alguns anos ainda nos questionemos. Afinal o que se passou naquele ano de 2020?
    Se vamos sair daqui diferentes? Não sei. Mas acredito que sairemos com marcas. E com medo.Mas também com esperança e sobretudo mais tolerantes uns com os outros. Ou não.
    Coragem para essa família linda e as melhoras do Pedro.

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    1. Também me questiono, como será depois disto tudo. beijinhos.

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  7. Muita força para essa família linda, o vosso Pedro vai ficar bem, um abraço bem apertado.

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  8. Olá Joana,

    Não sei se consigo que este comentário chegue em boas condições.
    Esta plataforma parece-me mais complicada que outras.
    Lamento que estejas a passar um momento menos bom com a ausência do Pedro.
    Coragem mulher. Uma leoa nunca vai abaixo. E nao tarda nada o Arco-iris vai entrar pela tua janela inluminar a tua vida.
    Beijos e abraços.
    José da Xã

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  9. "Aquele que tem uma 'porquê' para viver pode suportar quase qualquer". Voces têm um "porque" inquestionável na vossa familia: amor.

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