Recados curtos. Post longo.

 Devia ter uns 8 ou 9 anos. Férias de verão.

O meu irmão estava na Ericeira em casa dos meus tios e com o meu primo Filipe. 

A minha irmã também não estava. Era frequente no verão ir passar férias, no Algarve, com amigas.

Só a mim ninguém me pegava. Só a mim ninguém me levava.

Costumava ir para o Alentejo (e fui nesse verão) mas por esta altura os meus avós tinham feito uma viagem e ainda não tinham chegado.

Eu. Joana, de férias e aborrecida.

Era sexta-feira de manhã. O meu pai estava a trabalhar.

A dona Aurora estava de férias.

E a minha mãe tinha ido às compras sozinha. Ir com a Joana às compras era dose e impossível.

Nos anos 80, as crianças ficavam em casa sozinhas, na boa. Cozinhávamos, na boa. Subíamos a bancos para chegar ao armário e tirar a travessa para o almoço, na boa. E, ninguém morreu.

Estava aborrecida.

Muito aborrecida.

Mas....

....logo tive a ideia do dia! Nada...

A ideia do ano! Do século.

E se telefonasse para os meus amigos?

Assim pensei, melhor o fiz.

Fui a uma malinha que eu tinha, tirei uma agenda e comecei a discar os números.

Parece uma outra era. Tínhamos um telefone de disco. Branco. Na entrada de casa.

Telefonar era mais ou menos um luxo.

Servia para dar recados curtos. Dar os parabéns (de forma curta). E se uma pessoa tivesse uma dor de barriga valente ou algo similar dava para ligar para os bombeiros e afins.

O que o meu pai dizia era:

- O telefone é só para recados curtos. 

Só que eu estava aborrecida. E apeteceu-me falar com os meus amigos.

Disquei um número.

- Olá, bom dia, é a Joana! A Maria João está.

- Olá, Joana. Olha a Maria João ainda está a dormir.

Pronto! Não tive sorte à primeira, vou tentar outra pessoa.

Disquei outro número. E depois outro. E outro.

O meu pai chegou. Às sextas-feiras vinha almoçar em casa e a maioria das vezes não voltava para a empresa.

Se chegasse com um dossier na mão era porque não voltava. Depois de almoço instalava-se na sala e começava a trabalhar. Uma treta! Na sala tínhamos a televisão e nesse dia não podia ver porque o meu pai estava a trabalhar. E mais...

Tinha de fazer silêncio.

Podia reclamar? Não...

Porque se manifestasse o meu desagrado tinha de ouvir que o meu pai não tinha escritório porque quando eu nasci, o escritório foi convertido no meu quarto...

O meu pai chegou.

Com o dossier na mão.

- A mãe foi às compras mas já volta.

A minha mãe chegou. E ....

As pessoas não sabem estar caladas. A sério, custa??!

A mãe da Maria João encontrou a minha mãe e disse-lhe que eu tinha telefonado lá para casa.

Ui.........

.

.

A minha mãe contou ao meu pai.

Eu jurei a pés juntos que só tinha ligado à Maria João.

Mas. Os meus pais não caíram. E fiquei de castigo até a conta do telefone chegar.

Se a conta fosse muito mais do que costume continuaria de castigo e pagaria com a minha semanada a conta toda! Para aprender que o telefone é só para recados. Curtos!

 

A conta chegou. Obviamente que era avultada.

A minha semanada que já não dava para nada, sofreu um corte drástico. Com ela só conseguia comprar coisa nenhuma.

Deve ter sido por estas e por outras semelhantes que fui para gestão.

Lembro-me de ter ido para o meu quarto e pegado num caderninho e ter feito contas e mais contas e ter percebido que só em Fevereiro do ano seguinte é que voltaria a ter a semanada que tinha antes do episódio do telefone.

Voltei à sala com o meu caderninho e mostrei ao meu pai.

- Se vou ter estes cortes na semanada vou ter de cortar nas prendas de Natal. É isso que queres?

A minha lata era uma coisa que hoje em dia me surpreende.



Hoje. 2021.

Também já não telefonamos muito. Não sei bem porquê.

Eu sei porque não telefono. Não telefono, porque não gosto de falar ao telefone.

Se calhar foi trauma....

Hoje. Temos mil e uma formas de comunicação. O que é positivo. Ou não....

Ao longo do tempo fui desinstalando as aplicações que considero mais intrusivas.

Logo à cabeça aparece o whatsapp.

Detesto.

Mal instalei, fui sendo incluída em grupos e grupinhos.

Alguns, normais...

Por exemplo, tinha um grupo em que era eu, o Pedro, e os meus sogros. Só trocávamos mensagens que precisávamos. Recados. Curtos!

Mas. Há grupos e grupos.

E há grupos em que há sempre mensagens a entrar. Mensagens sem utilidade nenhuma. Acham que eu quero saber se a Maria foi comer um prego a Lamego e se o Manel está a passar férias em Punta Cana? Ou se a filha de uma amiga está no hospital e espetam a fotografia da pessoa toda intubada. Ou, então aquelas figurinhas que circulam e que gozam com o José Cipriano porque foi apanhado a conduzir em pijama. 

Tirei as notificações. Para não sair dos grupos.

Mas as mensagens continuavam lá.

Quando ia ver alguma mensagem (verdadeira), deparava-me com700 mensagens não lidas, desses grupos. E ainda por cima são sempre os primeiros na fila porque são aqueles que têm atividade.

Desinstalei o whatsapp.

Achei que seria por um tempo limitado. Mas acho que foi para sempre.

Chamem-me antiquada. Mas concordo com o meu pai. Recados Curtos!

O tempo, que é tempo tenho de o passar com quem faz mais sentido para mim. E não faz sentido nenhum perder um minuto de vida a ver que hoje, sim senhora, a Miquelina foi ao cabeleireiro e fez madeixas. 

Gosto mesmo é da vida real. E a vida real não está dentro de um telemóvel.




Comentários

  1. adorei as mensagens curtas.
    Beijinhos

    ResponderEliminar
  2. Por aqui tb não se gosta de falar ao tlf, mas sempre atribui ao facto de nunca ter tido telefone em casa na infância e como dizes ser um luxo quando apareceu e não era coisa para miúdos usarem.

    Mas por um lado grupos do WhatsApp ajudam a matar o distanciamento do teletrabalho, por exemplo, tenho um com as vizinhas fixes aqui do prédio, e vamos "quadrilhando" sobre as aventuras do prédio e outras miudezas, o que faz quebrar o pensamento de trabalho/trabalho...


    Nota - Que bom poder voltar a ler-te!

    ResponderEliminar
  3. A tua lata era do melhor 🤭🤭🤭

    Em miúda o telefone era mesmo usado só para o estritamente necessário... Ou para irmos às páginas amarelas procurar números e ligar a aparvalhar 😜

    ResponderEliminar
  4. Devo ter sido uma sortuda porque tivemos telefone muito cedo. Talvez o facto de o meu pai ser enfermeiro tenha contribuído para isso.
    Era utilizado com votos de Parabéns, Feliz Natal e as marcações dos pacientes do meu pai. Gosto de falar ao telefone, mas não mais de 20/30!minutos. Depois disso fico sem assunto e com o braço a doer.
    Quanto ao WhatsApp gosto. Mando muitas msgs a desejar bom dia, boa noite e frases que acho bonitas. Acho que é uma maneira de estar em contacto com os amigos e família com os quais não teria outra hipótese de comunicar.
    Alguns, tal como tu, devem pensar que sou uma "melga", mas não é verdade.
    É uma questão de afectividade e de demonstrar que estão sempre no meu ❤️.
    Beijnhos para todos e, gostei da surpresa de te ler.



    ResponderEliminar
  5. Faz tempo que não venho aqui.
    Hoje o telemóvel é uma ferramenta.
    Mas entendo a tua ideia. Imagina que tenho um grupo só do Sporting...
    Estas a imaginar não estãs?
    Tenho saudades de ti e da tua boa malta. Canitos incluídos.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Estamos bem mas estou super grávida. E tenho 3 miúdas pequenas....não tenho cabeça para a escrita....

      Eliminar
  6. Já tinha lido este post, quando foi publicado, mas, pelos vistos, não comentei, na altura. Comento agora.:-)

    Eu sou a sexta de sete irmãos. Quando eu tinha oito ou nove anos, ou dez, ou onze, não usava o telefone, salvo raras exceções, devidamente autorizadas. Mas alguns dos meus irmãos/irmãs mais velhos tinham uma vida social mais intensa (normal, para a idade deles) e usavam e abusavam do telefone. Resultado: houve uma altura, não sei que idade tinha eu nessa altura e não sei quanto tempo durou, em que o meu pai arranjou um cadeado que bloqueava o movimento do disco do telefone. Por causa de uma eventual emergência, os números até ao 5 estavam disponíveis (na altura não era o 112, era o 115), mas do 6 para "cima"... nada feito. As contas de telefone, mês após mês, justificavam esta medida dos meus pais (que me cheira a iniciativa do meu pai, mas não sei se foi ou não).

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares