leite quente com Tofina

Era uma vez o Natal....

Lá atrás. Nos anos 80.

Os 5. Dentro do carro.

A caminho do Alentejo. O meu pai conduzia. A minha mãe ia ao lado.

Eu, o meu irmão e a minha irmã atrás.

Eu no meio. Porque era a mais nova. E não tinha escolha.

A minha irmã levava um livro para a viagem e estava naquela fase em que não falava com ninguém. Já namorava o meu cunhado e tinha de o deixar no Natal e ainda por cima para ir para o Alentejo...se o mau humor pagasse imposto esta miúda tinha sido esmifrada pelo fisco.

O meu irmão ouvia música num walkman. Calado, caladinho porque era cedo e o rapaz ainda não estava bem acordado.

Eu não. Não tinha nada. Nem livro, nem walkman.

Só eu. E eu!

Não queria saber.

Eu estava feliz.

Eu estava eufórica....

...tinha saído de um castigo que já durava desde que nasci, ou quase!

Durante a viagem cantei. 

Falei. Perguntei. E respondi.

Perguntei coisas ao meu pai. À minha mãe. À minha irmã. Ao meu irmão. E ....

...a mim própria! Eu joguei ao jogo das matriculas sozinha. 

Cantei as músicas da abelha Maia. E todo o meu reportório de clássicos infantis.

Mas foi quando comecei a cantar o "we are the world" que tudo descambou!

Já tinha notado que o povo que partilhava o carro comigo começava a mostrar-se agastado com tamanha performance...pessoas sem pedalada!

O meu pai com a calma que sempre teve disse-me:

- Joana, dá-nos 5 minutos!

A minha irmã respirou de alivio, que eu bem vi!

E o meu irmão olhou para mim com um olhar vitorioso...

Não me chateei nada porque continuei a cantar para mim. Só para mim.

Mas uma pessoa é de ferro? Não! Uma pessoa não é de ferro!!

E estava a cantar só para mim e a canção entrou no refrão...

O que é que queriam que eu fizesse? Tive de cantar a plenos pulmões!

Foi um milagre o meu pai nunca ter espetado o carro nestas viagens ao Alentejo.

Às vezes olho para o Pedro e penso..

..nem sabes o que te espera daqui a uns tempos. :)

 A minha irmã estava com um ar de quem estava a viver o pior dia da vida.

O meu irmão passou-se. Começou por dizer que a minha pronúncia era uma vergonha. E que devia ter vergonha. E que devia estar calada. A minha irmã resolveu meter-se na conversa e dizer que não aguentava mais e que não queria nada estar ali. E que nunca mais acabava o Natal porque queria era estar em Lisboa. E a minha mãe mandou-nos calar a todos. E depois eu disse que não tinha sido eu que tinha começado que quem tinha começado tinha sido o Tiago e que o Tiago passava a vida a implicar comigo e que eu já não aguentava mais. E depois o Tiago chamou-me estúpida e puxou-me o cabelo e eu berrei-lhe ao ouvido e depois a minha irmã abanava a cabeça e dizia que nós éramos umas crianças e que não tinha que aturar aquilo e depois a minha mãe........

....e o meu pai:

- Calem-se todos! Não quero ouvir nem mais uma palavra!

Nem mais uma palavra. Respeitinho. Respeitinho.

É claro que eu continuei a cantar para mim e depois um bocadinho mal de nada mais alto de forma a matar o meu irmão de raiva mas sem o meu pai ouvir...era parva mas tinha amor à vida!

E depois chegámos ao Alentejo.

E fomos recebido pelos meus avós. Com abraços e cumprimentos.

Já lá estavam tios, tias e primos. E estava tudo maravilhosamente barulhento.

A minha avó tinha a mesa da sala posta. A lareira acesa.

E tinha para mim uma tigela cheia de leite quente com Tofina.

Leite quente com Tofina e uma fatia de pão para fazer sopinhas de leite. 

Era como beber um abraço quente. 

Nem sempre os abraços são físicos. Nem sempre o amor é dito. Declarado.

Às vezes está dentro de uma tigela de leite quente com tofina.

E nas nossas memórias. 

Um feliz Natal para todos.

Joana