Bingo!

23 de Dezembro.
1989.
Saímos cedo de casa. Diretos ao Alentejo.
Os meus avós esperavam-nos. Alguns tios meus já lá estavam. E primos também.
Não aguentava de ansiedade.
Ia comer doces até cair para o lado.
- Até parece que passas fome, Joana!

Não passava fome. Nunca passei fome. Mas os doces da minha avó eram os melhores do mundo e algumas iguarias só eram feitas no Natal.

Não aguentava de ansiedade.
Os meus primos estavam lá. Os mais velhos não queria nem saber. Mas o meu primo Filipe. O meu comparsa. O meu amigo. O meu companheiro de patifarias e aventuras.

Não aguentava. Não aguentava. Não aguentava de ansiedade.
E as prendas?? As prendas, senhores! As prendas.
Até a minha irmã me tinha comprado prenda!
Eu vi. Estava à espreita quando ela arrumou as prendas dentro do saco. E vi com estes olhos que Deus me deu uma etiqueta que dizia: Joana.
Joana era eu! Não havia outra Joana na família.

Nunca mais chegávamos.
Nunca mais.
- Ainda falta muito?
- Não, está quase.
Dizia o meu pai a ver se me enganava.
- Conta árvores.
Dizia o meu irmão.
Parvo! Ia agora contar árvores.

Chegávamos. Recebíamos um abraço dos nossos que já lá tinham chegado.
O meu avô dava-me um guarda-chuva de chocolate. Verde! O guarda-chuva era sempre verde.
A ansiedade não passava mas acalmava.
Tinha tanto para falar. Tinha tanto para correr. Tinha tanto para ver. Tinha tanto para comer.
O meu estômago ficava cheio ao fim de meia filhó. A outra metade era devolvida à minha mãe.
Com a pressa de brincar perdia a fome.
A minha mãe dava graças a Deus. Morria de medo que eu com as minha manápulas gordurosas carimbasse a toalha de mesa.

Em 1989.
O meu primo Filipe tinha ganho um jogo.
Na festa de Natal da empresa do pai tinha-o recebido e era ultra, mega fantástico.
Tinha uns cartões. Uma bola que girava com outras bolinhas numeradas lá dentro.
Sabem do que estou a falar?
Bingo!

Em 1989.
A noite de Natal da minha família foi passada a jogar bingo.
O meu avô definiu o prémio.
A caneta que costumava usar. Uma caneta de tinta permanente. Linda.
Jogámos uma vez. Jogámos outra vez. Jogámos muitas vezes.
Uma diversão nunca vista no reino dos Marques.
No final. Muito para lá da meia noite apurou-se o resultado.
O meu primo Filipe ganhou. O Filipe ganhou a caneta do avô. Ficou orgulhoso....e importante.
O meu avô com a sua voz grave disse-lhe:
- Ó rapaz, vê se lhe dás bom uso!
O meu primo era um dos netos mais novos, encolheu-se perante tal sugestão e disse timidamente...
- Vou dar, avô, vou dar...

No dia seguinte.
De manhã. As prendas. À nossa espera.
Eu. Asmática. Estava em crise.
Nos últimos dois dias tinha corrido. Andado dentro e fora de casa.
Apanhado todo o tipo de corrente de ar.
Pelas seis da manhã o meu pai tinha-me levado embrulhada num cobertor à rua para poder respirar melhor. O meu tio, médico foi dando as diretrizes aos meus pais. Embora eles já soubessem o que fazer.
Não aproveitei nada do dia de Natal.
Não aproveitei as prendas.
Mal conseguia respirar. E quando melhorava adormecia.
Estava exausta.
Não sei bem que horas eram. Acordei.
O Filipe estava ao meu lado.
Estendeu-me a caneta que tinha recebido do meu avô. E disse-me:
- Toma. Vê lá se ficas melhor...


O meu primo Filipe deixou-nos este ano.
Tinha 42 anos.
Quando éramos miúdos quis ensinar-me a dobrar os pés de cereja com a boca. Sem sucesso, algum!
Foi mais eficiente a ensinar-me, com o seu exemplo...
.... a ser mais generosa e mais disponível.



Desejo-vos um Feliz Natal.
Cheio de generosidade e disponibilidade. 

As melhores prendas que podemos dar? 
E as melhores que podemos receber?
O amor. 
O amor é sempre o melhor presente. Bingo!






Comentários

  1. Esta história é maravilhosa. E a lição que faz terminar a história também. Pena que as pessoas nao pensem qye existe um motor a fazer girar o nosso coração.

    Que o teu primo Filipe, esteja onde estiver, sorria com cada hisyoria bonita que tu, Joana, terás para contar acerca da tua familia. Histórias de aquecer o coração.

    Feliz Natal, com muito amor!

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  2. Ohhh Joana lamento muito...
    Mas de certeza que tiveste momentos muito felizes com ele. E isso consola um bocadinho.
    Perante uma notícia destas até parece um bocadinho estranho mas desejo-te do fundo do coração um feliz natal com muita saúde, paz e amor. Para todos (bichinhos incluídos).
    Beijinhos ��
    Marta

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    Respostas
    1. O meu primo morreu no verão. Não sei bem o dia porque optei por não querer saber. Não escrevi nada sobre isso na altura porque não consegui. Para mim não morreu, anda por aí a viajar....beijinhos para ti e para os teus. Tudo de bom.

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  3. O teu primo Filipe está sempre ao teu lado 💚
    Feliz Natal aí para casa🎄

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  4. Adorei a homenagem ao teu primo Filipe. Os pequenos presentes são sempre os melhores, com mais significado, com mais amor.
    Boas Festas para todos vós

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